quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A ADOÇÃO DO REGIME PRIVADO NOS CONTRATOS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


Por Natan Pinheiro de Araújo Filho

Advogado



No Direito brasileiro, é possível deparar-se com a dicotomia “contratos administrativos” e “ contratos da Administração”, sendo esta acepção, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, utilizada para abranger todos os contratos celebrados pela Administração Pública, enquanto aquela é designada para os ajustes da Administração celebrados para a consecução de fins públicos, sob regime jurídico de direito público. Destarte, a noção genérica de contratos da administração engloba, outrossim, os contratos realizados pela administração sob o regime de Direito privado. Entretanto, pode-se afirmar que a Administração goza de discricionariedade na adoção do regime jurídico, optando livremente pelo regime privado na execução de seus contratos?

Como se pode abstrair, a Administração Pública pode realizar diversas modalidades contratuais, sendo estas regidas pelo direito público ou pelo direito privado. Porém não é correto afirmar que a Administração pode optar livremente pelos regimes supramencionados.

A disposição é mera conseqüência do acolhimento da doutrina francesa do contrato administrativo, segmentando certos contratos em que a Administração, representante do interesse público, não poderia renunciar às suas prerrogativas para se submeter integralmente ao direito privado, equiparando-se ao particular.


Os contratos administrativos são caracterizados por serem “verticais”, sendo concebidos por alguns doutrinadores como legítimos atos unilaterais, em razão da posição de supremacia desempenhada pelo poder público, quem dita as “regras contratuais”, enquanto nos contratos da Administração, regidos pelo direito privado, o ente público é posto em situação de equivalência ao particular, denunciando-se, destarte, o caráter individualista desta forma contratual, o que é incompatível com o interesse coletivo.

Porém, para alguns doutrinadores a Administração não realiza atos meramente privados, ou exclusivamente públicos, pois, atualmente, ela está submetida tanto ao Direito Publico quanto ao Direito Privado, na prática. Ademais, este é o pensamento de Carlos Ari Sundfeld, senão vejamos:

“Quaisquer contratos da Administração estão, em todas as etapas de sua vida, sujeitos à observância do regime do direito administrativo, donde a impropriedade (e o perigo) de definir uma parcela deles como privados. A doutrina, inclusive brasileira, já vem reconhecendo que, mesmo nos ditos contratos estatais privados, incidem regras de direito administrativo, especialmente no tocante às condições e formalidades para a contratação (como a definição da competência para celebrar o ajuste, a necessidade de licitação, etc.) e a seu controle (através do Tribunal de Contas, p. ex.), o que é correto. Mas ainda persiste a idéia de que seu conteúdo seria determinado pelo direito privado. Parece-nos falsa essa visão, eis que os princípios e regras de direito público, ao incidirem nos contratos comuns, acabam por construir um regime novo, tipicamente administrativo, também para seu conteúdo”. (Licitação e Contrato Administrativo, 1994, p. 201).

Ademais, a legislação pátria rege a Administração pública com base em princípios que asseguram a segurança jurídica e o interesse coletivo, diferenciando a autonomia privada da legalidade dos atos da Administração. Apesar da influência civilista quanto aos conceitos do Direito Administrativo, não devemos olvidar a inexistência de autonomia privada da Administração, flagrante em nossa legislação, que condiciona seus atos à existência de procedimentos específicos, inafastáveis, e que excepcionalmente deslancham em contratações precárias sem um processo licitatório, mas também tais situações são previstas no ordenamento. Ou seja, não há plena liberdade de escolha entre o regime de direito privado ou público na realização de um contrato pela Administração, mas mera discricionariedade condicionada, por meio das opções apontadas pela legislação, possuindo, assim, caráter residual. Como exemplo, pode-se mencionar o art. 6º da lei nº 11.107/2005 que prevê personalidade jurídica de direito privado para o consórcio, caso obedeça requisitos do direito civil.

[...] O regime privado é baseado na liberdade individual e na autonomia da vontade, na assegurada possibilidade de busca de interesses egoísticos. Esse regime é incompatível com a natureza do Estado. Por definição, o Estado é um ente instrumental, existe para o cumprimento de uma função, vale dizer, para a busca do bem comum, para a concretização do interesse público. O Estado jamais, e não há exceção a essa assertiva, pode buscar a realização de interesses privados, só pode buscar o interesse público, pleonasticamente, para fins didáticos, qualificado como primário[...]

Assim, pode-se deduzir que a Administração pública, tendo em vista os princípios que norteiam sua atuação e a supremacia do interesse público, não possui liberdade para adotar o regime privado para os contratos que realiza, a não ser nas hipóteses previstas em lei e obedecendo os requisitos designados para tanto.



REFERÊNCIAS

BRASIL. Jurisprudência. STF. Disponível em: <>.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Contratos administrativos. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n°. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na Internet: .

MELO, Celso Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ed. 2 reimpr. São Paulo: Atlas, 2009.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 21ed. São Paulo: Atlas, 2008.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações & contratos administrativos. 2ª edição, Rio de Janeiro:Esplanada, 1994.

UMA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL SOBRE A APLICABILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 AOS ATOS DE IMPROBIDADE PRATICADOS POR AGENTES POLÍTICOS

Por Natan Pinheiro de Araújo Filho
Advogado

A Constituição Federal enuncia o princípio da moralidade como regente da Administração Pública enunciando em seus artigos art. 37, 85 e 102, a previsão de sanções aos seus agentes ao praticar atos denominados ímprobos. Tais sanções possuem previsão de ampliação no próprio texto constitucional, inclusive possibilitando a aplicação de sanções de naturezas diversas cumuladas, senão vejamos:

Art. 37, §4º, CF - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Art. 85, CF - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] V - a probidade na administração;
Art. 102, CF - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente: [...] c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;


Os dispositivos constitucionais supramencionados são disciplinados pelas leis nº 8.429/92 (art. 37, §4º) e nº 1.079/1950 (artigos 85 e 102, I, c), havendo previsão de sanções, segundo a doutrina, de natureza civil e político-administrativa, respectivamente. Outrossim, segundo dedução lógica, a aplicação de ambas as normas aos agentes públicos ou políticos, sabendo-se que estes são espécies daqueles, dar-se-ia de forma cumulada, justamente por possuírem naturezas diferentes. Entretanto, segundo decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 2.138-DF ambos os diplomas legais trazem em seus textos sanções de natureza político-administrativa, entendendo-se aplicável, aos agentes políticos, apenas a famigerada lei de responsabilidade (lei nº 1.079/1950), em detrimento da lei de improbidade, quanto aos atos tidos como ímprobos. Vejamos um trecho da decisão em comento:

[...] A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição[...].

A mal-afamada decisão é atualmente refutada por inúmeros juristas, pois através da mesma pode se deduzir uma menor “responsabilização” do agente político, que se vê albergado pelo entendimento de não aplicabilidade da lei nº 8.429/92, pelos atos praticados que atentem contra a probidade administrativa. Para o Supremo, tal inaplicabilidade se dá em razão de os atos de improbidade praticados pelos agentes políticos serem regidos, em sua visão, de forma exclusiva pelos artigos 85 e 102 da Constituição Federal, mesmo estando aqueles inseridos no conceito de agente público trazido pela lei de improbidade administrativa. Contrapõe-se, destarte, ao entendimento doutrinário majoritário de que também dever-se-ia aplicar o dispositivo do art. 37 §4º do texto constitucional.


Frise-se que a Reclamação nº 2.138-DF possui efeito apenas para o caso específico tratado na mesma, entretanto, esta denuncia a tendência de nossa Corte Maior para a não aplicação da lei de improbidade administrativo aos agentes políticos de que tratam os artigos citados. Ademais, conseqüentemente observa-se a permanência de foro especial a tais agentes políticos, posto que é de competência originária do STF e do Senado Federal julgar os atos praticados pelos agentes enumerados, respectivamente, nos artigos 85 e 102 da Carta Magna. Senão vejamos:


Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). II.4.Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos.

Em respeito ao que determinam os artigos 102, I, c e 85, V, da CF/88, a competência para julgar os crimes de responsabilidade dos agentes políticos elencados, segundo o decisum atacado, não é a comum, determinada para os atos de improbidade administrativa, mas especial.

O que se observa quanto ao debate da temática estudada é que o mesmo reside na inconstitucionalidade, por ab-rogação, do art. 102, I, c e art. 85, V, da CF, de acordo com a visão do STF, e na inconstitucionalidade plena do art. 37, §4º da Carta Magna pela inobservância da mesma na decisão em comento, de acordo com a posição de juristas e doutrinadores.

É de bom grado que se assevere a inexistência de conflito entre as normas constitucionais, não havendo possibilidade de controle de constitucionalidade das normas constitucionais originárias, como propriamente leciona MORAES e BARACHO. Assim, tendo em vista tal preceito básico de hermenêutica, não se pode conceber a tese de conflito entre as matérias tratadas pelos dispositivos elencados, devendo se valer de interpretação condizente com a Constituição em seu amplo aspecto.

Neste compasso, o que se abstrai desse impasse é a adoção de aplicabilidade mútua de ambas as normas infraconstitucionais, como sustenta a doutrina majoritária, posto que não possuem naturezas idênticas, como propriamente nos ensina DI PIETRO. Assim, em minha compreensão do causídico, dever-se-ia considerar a aplicação cumulativa de ambos os diplomas, buscando-se uma aplicação ampliativa, tendo em vista que o art. 37 é norma constitucional de caráter generalista, que dita a interpretação dos demais dispositivos da CF/88, enquanto o outros artigos em discussão tratam de matéria específica. Ou seja, em respeito à moralidade administrativa, deve-se considerar as sanções previstas na lei 8.429/92 como possuidoras de natureza cível, e não político-administrativa, como quer subverter o decisum em discussão, além de outros da mesma corte .

Destarte, percebe-se ser uma interpretação restritiva a realizada pelo STF na decisão em comento, a fim de que a Lei de Improbidade não seja aplicada aos agentes políticos mencionados nos artigos 85 e 102 da CF/88. Destarte, muito perderá a nação brasileira se adotada tal interpretação, posto que além de aviar o controle de atos administrativos, criando-se um quadro de insegurança jurídico-social, estar-se-ia justificando de forma pífia a aplicabilidade exclusiva da lei de responsabilidade em detrimento da lei de improbidade administrativa, por meio de mera “manobra interpretativa”, olvidando-se os princípios da moralidade e legalidade da Administração.


REFERÊNCIAS

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Matéria Constitucional e Processual Penal. Improbidade Administrativa e Prerrogativa de Foro ADI 2797/DF e ADI 2860/DF. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Brasília, DF. 15 de Setembro de 2005.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação. Matéria Administrativo-Constitucional. Usurpação da competência do supremo tribunal federal. Improbidade administrativa. Crime de responsabilidade. Agentes políticos. Reclamação nº 2138-DF Relator: Min. Nelson Jobim.Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. Brasília, DF, 18 de Abril de 2008

DE BARCELLOS, Ana Paula. Neoconstitucionalismo: direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. nº 15. Edição de janeiro-março de 2007 - Salvador - Bahia - Brasil.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ed. 2 reimpr. São Paulo: Atlas, 2009.